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À BEIRA DO RIO CEIRA

Blogue iniciado pela autora, Clarisse Barata Sanches, a exímia poetisa de Góis, falecida a 25 de dezembro de 2018. Que permaneça intacto em sua homenagem.

À BEIRA DO RIO CEIRA

Blogue iniciado pela autora, Clarisse Barata Sanches, a exímia poetisa de Góis, falecida a 25 de dezembro de 2018. Que permaneça intacto em sua homenagem.

VISITA AO LAR

23.09.09, canticosdabeira

MURMÚRIOS DO CEIRA

 

XV

 

VISITA AO LAR

 

Os Lares combatem a solidão, mas avivam as Saudades do convívio fraterno da família. C.B.S.

 

 

Numa tarde de sol, no dia de Ano Novo, subia eu as escadarias do Lar de idosos, pois decidira ir ver a Arlete, uma Amiga de infância que ali se encontrava. Pena é que a estrada não seja de mais fácil acesso para as pessoas, em dificuldade, se poderem movimentar melhor.

 

No entanto, desfruta-se dali um panorama maravilhoso! A montanha rendilhada de árvores, abraça ternamente o Céu e a verdura dos campos, marchetada de vermelho e branco, deixa ver ao longe o casario moderno dos arrabaldes da vila.

 

O entrar no Edifício, de estilo actual, engalanado de “rosas de todo o ano” e canteiros de violetas a perfumarem o ambiente, deparei na sala com cerca de vinte rostos: mais femininos que masculinos – apáticos, silenciosos e tristes: alguns até comoventes, devido aos seus estados de imobilidade sofredora. Entre estes, uma senhora com cegueira total e uma anãzinha que caminhava na sala com a ajuda de um andarilho. Notei com desagrado, que poucos idosos tinham visitas. Uma insensibilidade imperdoável dos tempos que correm.

 

Após os cumprimentos sentei-me ao lado da minha amiga, tendo a ocasião de escutar um diálogo curioso entre mãe e filha, esta de visita a sua mãe, naturalmente.

A Susana, coitada, já quase não reconhecia a filha – que lhe dizia: - sou a Maria da Graça!

- Também tinha uma filha com esse nome, mas ela já há muito tempo que não me visita…

- Sou, eu, mãe – dizia a Maria da Graça.

- Ai, és?! Como estás diferente! És, então, a Maria da Graça – respondeu a mãe, admirada!

 

- Oh, mãe, ainda cá estive pela Páscoa, não se recorda? Sabe, temos a vida radicada em Lisboa; depois, com as filhas a estudar, torna-se difícil passar mais vezes por aqui. O seu genro, também, raramente vai a Mangualde ver os pais. Pelos seus anos, costumo telefonar para saber de si, e a senhora Directora está avisada para, no caso de uma fatalidade, nos comunicar o facto. Que mais queria? A mãe tem de compreender a nossa situação.

 

 

- Está bem, Maria da Graça. Permita o Senhor que as tuas filhas te dediquem mais estima e te confortem melhor quando um dia chegares à minha idade, Vieste colocar-me aqui, como sendo um estorvo na casa, que nos custou muito a ganhar... e ainda uma mercadoria qualquer que se arruma no sótão. Eu sei que os idosos hoje, são um fardo pesado que poucos desejam acarretar com ele… mas “moeda cara”, que muitos hão-se receber de troco…

Mudando de assusto, diz-me:

Como estão as minhas netas? A Teresinha deve estar uma senhora! Muito gostaria de vê-las!

- Estou admirada, mãe, como está hoje de memória!

- É verdade. Tenho passado mal de saúde e de raciocínio, mas hoje rejuvenesci; parece um milagre ou melhor: - uma prenda do Menino Jesus! Fala-me, pois, das minhas netas:

 

- A Sara Luísa fez doze anos no dia 20 de Julho. Está muito gira! A Teresinha, com dezassete, cresceu bastante e já namora. Gostaria de traze-las comigo, mas quiseram ficar em Pombal em casa de umas amigas; elas gostam muito de praias, mas para o Verão vou entusiasmá-las a virem passar uns dias na terra. Nessa altura, a mãe, terá, então, o gosto de as ver.

- Obrigada, minha filha, mas só Deus sabe, se ainda viverei.

 

Nesse momento, a minha amiga Arlete, piscou-me um dos olhos, como condenando o à vontade daquela filha pouco carinhosa para com a sua mãe, uma doente nervosa, com arteriosclerose em estado progressivo, e disse-me baixinho:

- Tenho de falar com a Maria de Graça…

Esta, já se despedia da mãe, que hoje não lhe poupou censuras e lavada em lágrimas lhe recomendava:

 

- Não te esqueças de mim e de trazeres as minhas netas. Quero dar-lhes uma lembrança que me resta: o meu cordão de ouro para que mandes fazer dois fios bons para elas. Uma fica com a cruz de Cristo e a outra com a medalha da Senhora da Conceição.

 

A Arlete, pedindo-me que esperasse um pouco, acompanhou a Maria da Graça até à porta. Por uma janela da sala pude ver as duas sentadas no banco do terraço a conversarem animadamente. Note-se, que a minha amiga era companheira de quarto da Susana, sabendo quanto ela sofria com as saudades do lar, dos seus, e até da vida campestre da sua aldeia. Por isso lhe pedia:

- Venha ver a sua mãe mais vezes, sim? Coitada, custa-lhe muito viver distante da família e, alem do mais, tão doente. O seu irmão que vive na América do Norte, também pouco lhe escreve. Quando recebe uma carta dele, não se cansa de a beijar com pranto. Venha, Maria da Graça, e não se esqueça de trazer as meninas, que até eu gostaria de vê-las. Olhe, que a vida é uma roda a girar – continuamente – e um dia poderá saber como é triste notar o desprendimento da família e as carências do amor.

- Sim, D. Arlete, vou ver se consigo visitar a minha mãe com mais frequência. Hoje, quase me não conhecia e comovi-me muito com isso.

- Venha sim; até para dar esse belo exemplo às suas filhas que precisam de aprender a estimar os mais velhinhos.

Bem-haja, D. Arlete, pelo seu conselho que vou seguir. Enquanto não volto, por favor, repare por minha mãe.

 

Quando a minha amiga regressou à sala, a Susana já não estava, Provavelmente teria ido descansar um pouco e desabafar as mágoas e saudades, na cama. Reparei que a Arlete trazia estampado do no rosto um misto de alegria e paz, por ter tido o ensejo de dar à Maria da Graça – uma proveitosa lição de moral, que esperava resultar.

 

- Tenho de me ir embora, Aríete, que se faz tarde – disse-lhe:

- Sim, Maria Luísa, mas antes, gostaria que visses o nosso Presépio, exposto na outra sala. Como sempre, sou eu a armá-lo.

 

- Eu sei que és uma artista para tudo. E poemas têm feito muitos?

- O último que escrevi foi um soneto, em forma de acróstico, sobre a Terceira Idade. Vou deixá-lo, aqui mesmo, junto do Presépio, como seja um diálogo entre os dois idosos:

 

 

AS TARDES DA VIDA

 

- A – Ai, Maria, que triste a nossa vida!

S – Ser já velhinho e, – neste mar – viver…

T – Ter mil recordações para esquecer,

A – A nossa força toda já perdida!

 

- R – Reflecti na Palavra proferida,

D – De Jesus, quando o barco ia a tremer

E – E sobre as águas, quase a subverter,

S – Sossega a tempestade, espavorida!

 

D – Dizendo àqueles homens e de pé:

A “Ah, não temeis os ventos e a maré…

VVede… como Deus ama o povo seu!”

 

I – Irmão, façamos como Jesus disse:

D Dando louvor ao Pai! E na velhice,

A – A Fé é barco firme – para o Céu!

 

 

- Parabéns! Um soneto interessante e de sentido moral! O Presépio está lindíssimo, também.

Despedimo-nos à porta, com a promessa solene de nos voltarmos a ver, muito brevemente.

 

De regresso, pensei bastante na minha amiga Aríete; uma alma plena de sentimentos nobres, sempre pronta a ajudar o próximo, de maneira oculta e generosa.

 

No Lar é qual um Anjo tutelar a amparar os mais debilitados. Quando cheguei, acabava ela de servir a refeição a uma doente impossibilitada de se alimentar sozinha. Solteira, tinha acompanhado, com muita dedicação e carinho, uma sua tia também solteira, tia essa, que lhe doou todos os seus haveres, que eram consideráveis.

 

Esta minha amiga, de sessenta e dois anos, poderia estar numa boa Casa de Repouso, mas preferiu um Lar sóbrio, onde pudesse sentir-se útil, auxiliando os mais pobres, tanto doentes, como idosos. Diariamente reza por eles e faz muito boa companhia, porquanto é uma pessoa muito bem disposta.

 

O Lar foi ampliado para mais uma dúzia de camas e uma linda varanda; isto também com a sua preciosa contribuição, que nem gosta que se divulgue muito - costumando dizer:

“A Sagrada Escritura” revela claramente que a Fé sem obras é estéril. Que vale dizermos que acreditamos em Deus, se não cumprimos os seus preceitos? Também os demónios crêem Nele e estremecem…”

Sinto-me honrada e feliz por ter por amiga uma pessoa como a Arlete que pratica, entre outras, duas virtudes muito queridas de Jesus: - Solidariedade e Humildade. – Esta última, bem expressa no modo simples, despretensioso e exemplar como Deus, todo-poderoso, quis mostrar ao mundo o seu Natal, realizado em Belém – numa estrebaria!...

 

Finalmente, convido, as pessoas que podem, a visitarem os Lares, de quando em vez, porque os idosos gostam e é do agrado de Deus minorar-lhes as saudades e o triste fim da sua existência.

É bom lembrar que também nós, poderemos, um dia, vir aqui parar!...