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À BEIRA DO RIO CEIRA

Blogue iniciado pela autora, Clarisse Barata Sanches, a exímia poetisa de Góis, falecida a 25 de dezembro de 2018. Que permaneça intacto em sua homenagem.

À BEIRA DO RIO CEIRA

Blogue iniciado pela autora, Clarisse Barata Sanches, a exímia poetisa de Góis, falecida a 25 de dezembro de 2018. Que permaneça intacto em sua homenagem.

A ROSA MARIA

06.10.09, canticosdabeira

MURMÚRTIOS DO CEIRA

 

XI

 

A ROSA MARIA

 

A adversidade tem o efeito de desenvolver talentos, os quais, em circunstâncias prósperas,

nunca teriam acordado. Horácio

 

A “tia” Aurora, uma senhora viúva e doente do coração, de cinquenta e cinco anos de idade, morava nos arrabaldes duma vila Alentejana, com quatro netos pequenos.

Ficara adoentada e nervosa desde que o marido lhe morrera num desastre de viação e depois que a sua única filha – a Zulmira foi abandonada pelo marido, um bebedola refinado que lhe deixou ao encargo seis filhos menores para criar.

Também ela, um tanto desapurada no arranjo da casa e demonstrando um certo desprendimento pela família, logo deu a filha mais velha – a Celeste, a um casal que a levou para França.

A Zulmira trabalhava numa fábrica de confecções que, por deficiente orientação, foi levada à falência, tendo por isso ficado desempregada.

Numa tarde a “tia” Aurora ao chegar a casa, vinda do médico, ouviu da sua neta – Rosa Maria – esta triste história:

- A minha mãe abalou com o Lúcio e a Ana Rita. Veio aqui um homem de barbas, com automóvel e levou-os. Ficámos a chorar, mas a minha mãe disse que voltaria um dia para nos levar também.

Mas não aconteceu assim. No dia seguinte apareceu à porta de casa, choramingando, a Ana Rita que só tinha dois aninhos.

Depreendeu-se que o marmanjo do homem, com quem a Zulmira fugira, não quis a menina mais nova e vieram depois colocá-la ali para ser recolhida pela avó, que logo a acarinhou com beijos.

 

Decorridos são três anos desde que a Zulmira saiu de casa e lhe deixou ao seu cuidado estes quatro netos: Rosa Maria, João, Márcia e Ana Rita, agora com 12, 10, 7, e 5 anos de idade.

A “tia” Aurora, a braços com eles todos, chorava a sua desdita e quase os mandava ir pedir. Para sobrevivência da família, havia apenas a sua pensão de reforma de trinta mil escudos mensais e um pequeno subsídio que lhe dava a Assistente Social para os menores.

Hoje, o problema das crianças está mais suavizado com as Creches e Cantinas Escolares que abundam, graças a Deus, por essas terra além. Mas nesse tempo difícil, era assim o viver de muitas famílias.

Um chefe de uma Companhia de Circo pedira a Rosa, a troco de uma quantia atraente, mas a avó não aceitou a proposta, nem a menina queria separar-se dos manos e da avó. Preferia passar fome e andar mal vestida. A Rosa Maria, que até aprendia bem, concluindo o ensino primário, parou de estudar e disse à avó:

- Vou ver se arranjo um trabalhito qualquer para ajudar à despesa da casa. E quem sabe se, mais tarde, poderei continuar os estudos…

- És ainda muito pequena para isso.

- Já trago uma coisa na ideia… – respondeu a esperta menina.

Enquanto a avó saía às compras, a Rosa abeirava-se duma casa vizinha, onde morava um casal já idoso, com quem a menina gostava de conversar a uma janela baixinha e até aviar alguns recados. A troco disso, a senhora dava-lhe sempre dois pãezinhos que ela levava para casa, partia em bocadinhos e repartia com os manos.

Um dia a avó veio dar com eles a comerem os bocadinhos de pão, e até os seus olhos se regalaram de ver aquela cena de ternura e de alegria. A Rosa – esclareceu assim, a avó:

- Há muito tempo que todos nós comemos bocadinhos de pão, que me dá a vizinha D. Adosinda. É lá, minha avó, que eu penso ir empregar-me, Eles têm mulher-a-dias, mas precisam de mais alguém que os acarinhe e os anime na sua solidão. Fui eu mesma que me ofereci para isso. Um casal de velhinhos que precisam de conforto e de uma companhia que os ajude a levar a Cruz da sua vida. Sabe, têm um filho só que está no estrangeiro, mas, segundo percebi, muito raramente os vem visitar.

- Estou admirada e também muito orgulhosa de ti, minha neta! Fazes-me falta, por seres a mais velha, mas se esse é o teu desejo, não me oponho que vás auxiliar esses senhores, que devem ser boas pessoas. Além disso, fica muito perto.

- Até pudemos, minha avó, falar de uma janela para a outra…E bons senhores também lhe garanto que são.

Daí a um tempo já a Rosa Maria estava empregada na casa vizinha e logo aprendeu a cozinhar e a tratar das limpezas dó lar.

Os senhores eram ambos professores aposentados e muito distintos. No princípio estava com eles durante o dia, e à noite vinha dormir com a avó. Quase sempre trazia restos de comida boa, que os manos comiam que se consolavam. Agora, muito mais que pão em bocadinhos…

Uma noite, Rosa chegou a casa muito feliz e disse à avó:

- Os senhores gostam muito de mim e já decidiram que me vão ensinar de tudo o que sabem.

- E como fazes o serviço?

- Nas horas livres. Pensam também não despedir a mulher-a-dias. Ontem já estive a aprender os verbos em francês. Eles falam muito bem esta língua. A D. Adosinda quer também ensinar-me a bor dar e a tocar piano; imagine! Só queria que visse o bonito piano que eles têm na sala! Vai ver como vou fazer-me ali uma senhora de estalo!... E eu, que gosto tanto de música!

Após quatro anos naquela casa, a Rosa Maria já não parecia a mesma, expressando-se até muito melhor. Pena foi que, nesse espaço de tempo, falecesse o Dr. Amândio, marido da D. Adosinda. Deste modo, a Rosa passou a viver com a senhora, dormindo no mesmo quarto.

O filho, que vivia nos Estados Unidos, vindo a Portugal, reparando quanto a Rosa Maria era solícita e carinhosa para com a sua mãe – disse-lhe:

- Estou muito rico, minha mãe. Se gosta da Rosa, como parece, pode doar-lhe tudo o que entender. Percebi já que lhe é muito dedicada. Proceda, sim, como seja sua filha também.

Desta maneira, aquela linda vivenda cor-de-rosa, com jardim à frente, logo foi transferida para o nome de Rosa Maria. Igualmente ficou como primeira titular dos muitos milhares de contos que tinham nos Bancos.

Habituando-se a chamar madrinha à D. Adosinda, cada vez mais se estimavam. É que a Rosa aprendera com ela a meditar na Sagrada Escritura, o que facilitou muito o exercício das virtudes Cristãs, dizendo, mesmo: não me interessa o mundo mundano. Nem parecia moça deste tempo; sempre recolhida em casa a fazer boa companhia à madrinha, que chegou a não poder andar e estar acamada, até que depois o senhor a chamou para o Céu.

Rosa, que lhe servira de Enfermeira, tinha nesta altura 22 anos. O João foi para a América do Norte e empregou-se bem nas Empresas do filho da D. Adosinda, mandando cartas muito bonitas às irmãs e à avó.

A Márcia e a Ana Rita, protegidas de Rosa, andavam a estudar e já tinham escolhido o futuro. A Márcia queria ser professora e a Ana Rita, Assistente Social. Esta, após a morte da Senhora D. Adosinda, passou a viver com a Rosa Maria, porquanto a Márcia ficou com a avó na casa antiga, que a Rosa comprou e mandou reconstruir para elas.

A Rosa Maria encantava pela sua simpatia e nunca havia namorado, apesar de algumas visitas da casa repararem nela e de ter recebido várias propostas. Até um jovem advogado, que tratava dos assuntos da madrinha, lhe havia feito uma séria declaração, que ela não aceitou.

Agora, com 23 anos, feitos pelo S. Brás, acabou por anuir às insistências do Dr. Bruno José e casaram na capelinha de S. José.

Efectivamente, naquela enorme casa, precisava-se de um homem capaz de gerir os muitos haveres, com os quais a Rosa se via embaraçada, apesar de muito saber e evidenciar uma rara inteligência.

Numa tarde, calma de Outono, andava a Rosa Maria a regar o jardim, quando viu encostada ao portão uma mulher, muito mal vestida e de rosto triste, a chamar:

- Menina! Menina! Pedia-lhe o favor de chegar aqui!

A Rosa, abeirando-se do portão, estremeceu ao ver aquela mulher que lhe lembrava traços de “alguém” que já conhecera…

Ela fez-lhe então, esta pergunta:

- Não morava aqui defronte uma senhora viúva de nome Aurora, que tinha uns netos com ela? A casa já não é a mesma, pois não possuía aquela linda varanda voltada para a rua, mas penso que era ali, não era, menina?

- Sim, e por acaso é ainda viva, embora já velhinha e desfeita de desgostos. Teve só uma filha que abalou de casa, deixando-a com quatro netos pequenos, que criou com grandes dificuldades. Hoje, graças a Deus, estão bem, mas ela todos os dias chora a filha desaparecida há catorze anos, sem nunca mais ter dado sinais de vida

- Ai, menina, estou a tremer toda! Eu trago-lhe notícias dela, que é minha amiga e chama-se Zulmira. A menina pode vir lá comigo, para ouvir um pouco da sua história?

- Sim, vou! – Respondeu a Rosa Maria que, tendo a chave da casa da avó, logo foi abrir a porta e – chamou assim:

- Minha avó, tem aqui uma visita…

Certamente o leitor já se apercebeu que aquela mulher desgrenhada, mal vestida e marcada por uma vida errante, era a Zulmira, filha da “tia” Aurora e mãe da Rosa Maria.

Esta, quando deparou com a mãe velhinha e lavada em lágrimas, não se conteve e ajoelhou-se a seus pés, – volvendo, comovida:

- Perdoe-me, minha mãe – que sou uma desgraçada que volta arrependida ao lar materno! A mãe não sabia de mim, e eu também nada sei da Celeste, nem do Lúcio que levei para a Suiça. Tenho passado uma vida árdua, saudosa e cheia de privações. A sorte não me sorriu de maneira alguma. Foi o castigo da minha imprevidência.

-És, realmente, a minha Zulmira? Deixa-me ver-te bem… Quase não acredito! Todos os dias pedia a Deus, que não me levasse do mundo sem te rever!

A Rosa Maria, surpreendida e diante daquela mulher, quase irreconhecível, que a tinha dado à luz – volveu, beijando-a:

- É então a minha mãe?! Também me pareceu… Como deve ter sofrido! A partir de hoje vai ter uma vida melhor, junto de nós.

Nesse momento, aparece na sala uma graciosa rapariga – a Márcia que chegava da Escola e ficou surpreendida com a estranha visita….

- É a nossa mãe que voltou – disse a Rosa à irmã, que logo a abraçou com muito carinho e emoção.

No Domingo seguinte, organizou-se naquela casa um bom jantar, comemorando o regresso da filha e mãe ao lar da família. A Ana Rita, que estava fora a estudar, foi mandada vir para assistir à função e ao alegre convívio, tendo o Dr. Bruno José estado também presente.

A Rosa Maria vestiu a mãe de roupa nova, dos pés à cabeça. Parecia já outra sentada à mesa, enlevada a olhar para as filhas e muito, especialmente, para a Ana Rita, que deixou tão pequenina e a via agora com dezasseis anos, tão risonhos! Tudo isto, graças à sua Rosa que tinha um coração de ouro, repleto de Amor e de excepcionais virtudes.

A “tia” Aurora contou à filha que o João estava nos Estados Unidos, muito bem, esperando-se que viesse, dentro em breve, fazer-lhes uma visita.

 

Resta dizer, que o Dr. Bruno José prometeu à sogra que iria diligenciar meios através das Embaixadas Estrangeiras, afim de ver se poderiam descobrir os paradeiros da Celeste e do Lúcio, pois havia, agora, só esta contrariedade na família.

Rosa Maria, uma alma sensível e querida que contribuiu para o bem-estar de todos, ainda não esqueceu a vida difícil e penosa que teve em criança, as privações que passou e aqueles bocadinhos de pão que trazia da D. Adosinda para mitigar a fome dos irmãos,

 

Pela sua generosidade e comportamento de jovem exemplar, bem merecia as bênçãos de Deus e ser feliz.