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À BEIRA DO RIO CEIRA

Blogue iniciado pela autora, Clarisse Barata Sanches, a exímia poetisa de Góis, falecida a 25 de dezembro de 2018. Que permaneça intacto em sua homenagem.

À BEIRA DO RIO CEIRA

Blogue iniciado pela autora, Clarisse Barata Sanches, a exímia poetisa de Góis, falecida a 25 de dezembro de 2018. Que permaneça intacto em sua homenagem.

A ÚLTIMA CARTA DA MÃE

08.10.09, canticosdabeira

MURMÚRIOS DO CEIRA

 

X

 

A ÚLTIMA CARTA DA MÃE

 

Cuidar dos seus pais, é estar já a cuidar de si. C.B.S.

 

Há muitos anos que a “tia” Rita Manuela não recebia notícias do Canadá. No entanto, escrevia várias vezes por ano ao seu único filho que ali vivia sem se lembrar da mãe que o dera à luz e o havia criado até aos dezoito anos, à custa de muitas canseiras e sacrifícios.

A “tia” Rita Manuela era solteira e tivera aquele filho de um mariola qualquer que a seduziu e faltou à promessa de casamento, Todavia, nunca mais deu que falar na sua terra, trabalhando com muita honestidade, ao dia fora, para se sustentar e sustentar o seu filhinho, que era todo o seu enlevo!

Um menino belo e, por acaso, muito parecido com o pai que casou depois em Lisboa e não teve filho algum da mulher que escolheu para sua esposa. Desgostoso, ainda tentou, por “portas travessas”, obter permissão da Rita para que lhe desse a criança, o que ela recusou terminantemente…

O Carlos Manuel fez na vila o exame da 4ª classe com distinção; tinha até uma letra muito perfeita.

Durante uns dez anos ainda escreveu regularmente. Depois casou, vieram os filhos e o rapaz começou a esquecer-se da sua terra e nunca mais escreveu à desolada mãe…

Constava na aldeia do Carvalhal que a fortuna lhe sorrira e que ainda era vivo naquelas paragens. Estas informações eram também confirmadas pelas cartas que seguiam com remetente e não voltavam devolvidas.

A “tia” Rita Manuela, que tinha agora 72 anos, tornou-se muito doente, valendo-lhe a prestimosa caridade dos vizinhos e a pequena pensão de reforma que recebia da Segurança Social; muito lúcida e inteligente, mandava ainda cartas interessantes ao seu filho, escritas por sua mão. Já um bocadinho trémula…

É uma destas cartas, a última infelizmente, que transcrevemos aqui, com muita ternura e sentimento.

“Meu querido e saudoso filho

Não sei se te recordas de mim! Eu sou a tua mãe, a “tia” Rita Manuela que há mais de vinte anos te escreve várias cartas por ano, sem que tenha a alegria de receber uma simples letra tua.

Como deves saber, é sempre pelo Natal, pelo Ano Novo, pela Páscoa e pelo dia dos teus anos que te mando missivas, todas elas recheadas de Saudades. Tenho já 72 anos, feitos no dia de S. Brás e penso não completar mais nenhum. Tu, se Deus quiser, irás fazer cinquenta no dia de S. Miguel Arcanjo.

Guardo bem na lembrança esse dia memorável do teu nascimento. Os meus pais tinham-me posto fora de casa e recolheu-me a avó Alzira, que era uma santa criatura e nos dedicava um grande afecto.

Criei-te sem vergonha do mundo, mas com muitas dificuldades. Fominha não passaste, graças a Deus e às boas almas que nos ajudaram. Se chorei lágrimas de dor para que medrasses como os outros meninos, ainda hoje não me importaria de passar pelos mesmos trabalhos para ter a felicidade de estar junto de ti, outros dezoito anos. Tu és pai também! Pelo amor que dedicas aos teus filhos, poderás medir o sentimento de afecto que te consagro, não obstante estar separado de ti há trinta e dois anos! Deus queira que jamais notes a falta da estima deles. Seria muito penoso para ti.

Vou recordar uma cantiga que ouvia muito na minha mocidade e merece a reflexão do espírito:

Pode um filho estar ausente/ Que a mãe, na sua afeição/ A toda a hora o pressente/ Dentro do seu coração.

Vivo modestamente, mas consola-me saber que não passas as mesmas privações. Ainda ontem fui ao médico e vi-me atrapalhada, porque o dinheiro não chegava para comprar os remédios na farmácia. Os medicamentos em Portugal sobem todos os dias e ninguém se compadece… Mas não te comovas! Eu fico alegre em saber que vives numa terra progressiva do Canadá e não numa aldeia deserta de Portugal, onde até as pedras choram a desgraça dos velhotes como eu!...

O Zé da Filomena, que veio daí o ano passado, disse-me que estás gordo e bonito! Todos os dias te responso ao Santo Antoninho para que te proteja. Como gostava de te ver, Carlos Manuel! Que Saudades, meu Deus, que Saudades! E os meus netinhos como vão? Ouvi dizer que o mais velho já casou e tem uma menina encantadora! Como deves estar contente, vendo a família a multiplicar-se.

Apesar da lonjura que nos separa, sinto uma enorme alegria também quando comunico contigo por este meio que possuo para te manifestar o meu grande amor de mãe!

Esta, será de todas, a carta mais triste e sentimental que te escrevo, porque pressinto seja a última, meu filho! Noto agora muita falta de forças e o médico engelhou bastante o nariz ontem na consulta, E que ando eu cá a fazer neste vale de lágrimas? Perdoa, se te entristeço, mas o mundo já me não dá uma réstia de esperança!

Sabes? O tio Jorge faleceu o mês passado com uma doença terrível! Que Deus o tenha a seu lado. Foi sempre muito nosso amigo. Ainda tenho aquele banco que ele te ensinou a fazer com muita paciência. Lembras-te?

Ao despedir-me, quem sabe se para sempre, envio mil beijinhos ternos para os meus netos, um abraço à tua esposa que não cheguei a conhecer. Para ti, meu rico filho, vai um especial chi-coração, igual aos que me deste e eu te dei na tua infância querida. Que Deus te cubra de bênçãos.

 

Adeus, meu Amor! Tua mãe, muito amiga

Rita Manuela”

 

No dia de Páscoa, muitas foram as pessoas que viram estacionar um bonito e luxuoso automóvel, verde-escuro, junto à casa da “tia” Rita Manuela e um senhor de meia idade a bater à porta…

Um moço que passava – perguntou: -O Senhor queria alguma coisa? A “tia” Rita Manuela enterrou-se ontem. Sobre a sua campa estão ainda as rosas frescas. Toda a gente do Carvalhal teve muita pena dela. Era uma santa!

O cavalheiro, depois de agradecer a informação, retirou-se tristemente e as pessoas na rua se4guiram-no com olhar curioso, reparando que ele se dirigia para o cemitério do povoado.

 

Era ele, o Carlos Manuel que saíra da aldeia há mais de trinta anos. Já não conhecia ninguém, e também, naquele momento de desânimo, não quis dar-se a conhecer…

Pelas flores, ainda lindas, logo descobriu a sepultura de sua mãe! O Carlos Manuel vinha para a abraçar neste Domingo de Páscoa, mas já não chegou a tempo…

Alguém encostado ao portão do cemitério, ouviu pronunciar-lhe estas frases, num tom bastante magoado:

- Perdoa-me, minha mãe! Perdoa-me, minha mãe!

 

……………………….

 

Tu, que és filho ou filha, aproveita, como Deus manda, todas as horas da vida, para honrar, acarinhar e amparar na velhice os teus progenitores. Antes que seja tarde demais, manifesta-lhes sempre a devida gratidão, reflectindo nestas palavras da Bíblia:

“Honra os teus pais de todo o teu coração. Não esqueças os gemidos da tua mãe. Lembra-te que não terias nascido sem eles. E como lhes pagarás o que por ti fizeram? Ecle.7 – 27.28.”