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À BEIRA DO RIO CEIRA

Blogue iniciado pela autora, Clarisse Barata Sanches, a exímia poetisa de Góis, falecida a 25 de dezembro de 2018. Que permaneça intacto em sua homenagem.

À BEIRA DO RIO CEIRA

Blogue iniciado pela autora, Clarisse Barata Sanches, a exímia poetisa de Góis, falecida a 25 de dezembro de 2018. Que permaneça intacto em sua homenagem.

O ZÉ PEQUENO

12.10.09, canticosdabeira

MURMÚRIOS DO CEIRA

 

IX

 

O ZÉ PEQUENO

 

Ninguém será pequeno no mundo, se desejar ser grande. C.B.S.

 

Chamavam-lhe o Zé Pequeno, mas o seu verdadeiro nome era José Francisco da Silva Fernandes

E morava na aldeia de Folgoselha, pertencente a um concelho da Beira Alta.

 

Sendo o mais novo de três irmãos e de estatura baixa, viveu sempre numa terra pouco povoada, com difíceis meios de comunicação rodoviária e sem uma Escola de Instrução Primária. Os seus irmãos, cedo abalaram para Lisboa e lá aprenderam o que a sua terra Natal não lhes pôde oferecer: - Instrução!

Os pais eram modestos agricultores, porquanto o filho mais novo ficou para ampará-los e ajudá-los na lida do campo. Mas o pequeno era fraco.

Tinham muitos animais, de que o Zé gostava imenso. Destes fazia parte um rebanho de cabras e ovelhas que todos os dias o Zé Pequeno levava a pastar para o monte. Era um zagal muito alegre e divertido, e ainda com uma certa habilidade para fazer flautas e assobios. Muitas das vezes quando tocava e cantava, o gado, junto dele, até pulava, como que a fazer ensaios de dança!...

Chegado aos vinte anos o Zé Pequeno foi às sortes, mas ficou livre do serviço militar por ser um pouco raquítico, baixo e um nada corcunda. No entanto. Ninguém diria que era um rapaz muito inteligente e com vontade de saber e fazer tudo.

Chegou a namorar, com muito entusiasmo, uma moça sua vizinha, que um dia saiu da aldeia e foi servir para o Porto e por lá ficou, casando e esquecendo o pastor apaixonado, que morria de amores por ela.

Durante muitos anos, ninguém mais o ouviu cantar e tocar na sua flauta, pelo que até o rebanho estranhou a tristeza do pastor e os garotos lhe perguntavam:

- Zé Pequeno, porque não toca na sua flauta?

- Porque não me apetece, – dizia-lhes com voz magoada e triste.

 

Mais tarde, e após a morte dos seus pais, ficou sem ninguém. Uma tia materna veio ainda viver algum tempo com êle, mas também chegou o dia de partir para a Eternidade, de maneira que o Zé Pequeno teve de ficar só e desamparado, apenas com os animais que tratava e estimava como irmãos. Tinha também um cãozinho que o acompanhava sempre. Alguns familiares, que viviam lá por Lisboa, nem dele se lembravam já… Pobre Zé Pequeno!

Aos cinquenta e cinco anos continuava a pastorear no campo e por lá ficava a tarde toda, levando uma merenda que, muitas vezes, repartia com as mansas ovelhas e cabras. Em dada altura, e porque os cabritinhos a saltar o faziam sorrir, começou novamente a ser uma pessoa alegre e bem disposta. Entretinha-se a fazer flautas e assobios para os miúdos da aldeia, que não o deixavam em paz.

Entre o rapazio da terra, havia um chamado Armando, de quem o Zé Pequeno muito gostava e atraí-o para que lhe fizesse companhia, O Armandito, de nove anos, frequentava a Escola Primária que nesse tempo já havia com professora da cidade. Hoje manifesta-se um contraste flagrante: as velhas Escolas das aldeias vão encerrando por falta de alunos… Por isso, a Natureza, vestida de verde-escuro, chora com pena e os passarinhos entoam elegias, voando de ramo em ramo!

Todas as tardes o Armando, que já frequentava a 3ª classe, pedia aos pais e ia estudar para junto do Zé Pequeno, guiando o rebanho agora para o cimo da encosta, porque as terras do vale estavam lavradas.

O pequeno Armando sentava-se numa lousa e com outra a servir de mesa, ali fazia os seus deveres, olhando de vez em quando para os cabritinhos aos saltos e para o seu amigo, entretido a arranjar flautas com um canivete. Este, dizia-lhe assim:

- Tenho muita pena de não saber ler para te dar umas lições e ajudar-te a fazer os trabalhos. Olha, empresta-me o teu livro de leitura. Pelo menos vou vendo as figuras, enquanto o canivete e as mãos descansam um pouco.

Num certo dia, e passado algum tempo, o Armando vira-se para ele e diz-lhe com ar muito sério:

- Quer que eu o ensine a ler, Sr. José Fernandes?

- Ai, se tu fosses capaz disso, dava-te aquela borreguinha preta que anda acolá em baixo a brincar… – respondeu o bom homem – todo entusiasmado.

- Vamos a isso, então! Amanhã trago-lhe o meu livro de leitura da primeira classe, que está ainda em muito bom estado, uma lousa pequena que lá tenho em casa, e ainda papel e um lápis para começar a aprender a lição… Mas isto tem de ser muito em segredo, está bem?

- Sim, Armando… Todos os dias os dois companheiros se escondiam, cada vez mais, por detrás das moitas e pinheiros, para que não fossem vistos por alguém do povoado e nem sonhassem o que se estava a passar lá no monte.

O Armando andava satisfeito com o seu aluno, que já conhecia as letras todas do alfabeto. Ao iniciar a tarefa de juntá-las, foi um sucesso enorme! No espaço de dois meses, pôs o Zé Pequeno a ler e a escrever regularmente.

Daí a um tempo – disse-lhe o Armando:

- Agora vou ensiná-lo a fazer algarismos e a contar até mil.

- A contar não me ensinas tu, Armando. Sei contar até um milhão e fazer contas de cabeça…

- Óptimo! Assim custa menos a aprender e vossemecê, com tanta força de vontade, em breve saberá resolver uma conta e problemas com um lápis.

 

E assim foi, realmente. O pior é que os pais do Armando começaram a notar que ele se demorava agora mais a fazer os deveres… Mas, como a senhora Professora lhes disse que ele ia muito bem nos estudos, não lhe ralharam muito..

Numa tarde, o Armando falou assim ao Zé Pequeno:

- Já sabe o bastante para andar como eu na terceira classe. Se quiser pode depois continuar os estudos para fazer a 4ª classe no Curso de Adultos, que é muito mais fácil.

- Que bom! Nesse dia faremos uma patuscada e levas a ovelhinha preta, que te prometi.

 

O Zé Pequeno tinha já cinquenta e seis anos e vivia agora muito mais feliz, lendo o jornal da vila e andando a par de todos os acontecimentos, graças ao Armando que fez dele um discípulo muito querido e aplicado.

No ano seguinte, prestes a chegar o tempo das férias, o Armando, que andava também radiante com o progresso do seu aluno – disse na Escola à senhora Professora:

- O senhor José Fernandes quer fazer o exame no Curso dos Adultos.

Muito admirada, a professora – perguntou:

- Mas olha, lá. O Sr. José Fernandes não é analfabeto?

- Era, mas já não é, minha senhora! Sabe? Ele é muito inteligente, e como tinha grande força de vontade em aprender, do pouco que eu sabia, fui-lhe e3nsinando, e agora penso que já sabe o suficiente para a prova do exame.

- Bravo, Armando! Amanhã traz-me cá o teu amigo, que eu quero examiná-lo, afim de inteirar-me dos seus conhecimentos.

Ao outro dia, o Zé Pequeno “fez-se grande”, vestiu a sua melhor roupa e foi com o Armando às Escola, na parte da tarde.

Primeiro fez um ditado, que foi magnífico e sem erros, maravilhando a senhora Professora. Depois, perante o seu desembaraço na quadro a fazer as contas e problemas, a senhora Dona Graça Maria surpreendeu-se com o que ele já sabia de toda a matéria e explicou, então, que ia propô-lo sem medo para muito em breve efectuar a prova da 4ª classe. Naquele momento, ela não se conteve e beijou com muito carinho o Armando, que foi também elogiado, naturalmente, por todos os que o conheciam.

Até o Sr. Inspector veio propositadamente assistir ao brilhante exame, trazendo para o Armando uma lembrança e uma linda medalha de prata, por ter sido capaz de fazer com que o Sr. José Fernandes não fosse mais analfabeto e vivesse na sua terra, com maior satisfação.

Os pais do Armando eram relativamente pobres, mas o Sr. Inspector prometeu ajudá-los para que o filho pudesse continuar os estudos e, quem sabe, vir a ser um bom Professor do Ensino Básico ou até Secundário.

 

O Sr. João Antunes e a senhora Maria do Rosário não cabiam em si de contentes, por verem o filho tão enaltecido e transformado em herói na sua terra… e exclamavam:

- Louvado seja Deus pela graça e imensa alegria que nos deu, por vermos o Zé Pequeno munido da carta de exame e o nosso Armando condecorado com uma linda medalha de prata!

 

Daí a alguns dias, houve quem visse o Armando, radiante de felicidade, levando a sua borreguinha preta, nas costas, que o Zé Pequeno lhe tinha oferecido de recompensa e cantarolava assim:

 

Borreguinha preta

vem pró meu curral,

que o “ti” Zé Pequeno

já lê o jornal!