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À BEIRA DO RIO CEIRA

Blogue iniciado pela autora, Clarisse Barata Sanches, a exímia poetisa de Góis, falecida a 25 de dezembro de 2018. Que permaneça intacto em sua homenagem.

À BEIRA DO RIO CEIRA

Blogue iniciado pela autora, Clarisse Barata Sanches, a exímia poetisa de Góis, falecida a 25 de dezembro de 2018. Que permaneça intacto em sua homenagem.

ENLEVOS DE AMOR

14.10.09, canticosdabeira

MURMÚRIOS DO CEIRA

 

VIII

 

 

ENLEVOS DE AMOR

 

 

Um bom livro educa e civiliza qualquer pessoa. C.B.S.

 

Nos subúrbios duma pequena vila beiroa, habitava na bonita vivenda “Margarida”o senhor José Martins Gouveia, de 75 anos de idade, acompanhado apenas da sua antiga empregada Elvira que, por ser muito dedicada ao seu amo, nunca o quis deixar só.

 

Quando, há cerca de 15 anos, a D. Margarida Gouveia faleceu, esta, pressentindo o seu fim, pediu à Elvira, (que nunca se quis casar) que tomasse conta do seu marido que ficava quase só no mundo, pois o único filho do casal havia falecido muito jovem, num desastre de viação.

 

Logo após a perda da esposa, o senhor Gouveia, que fora um conceituado lavrador, resolveu vender todas as propriedades e ficar apenas com a casa e quintal à volta. A Elvira, que tinha menos 15 anos do que ele, também aprovou a ideia – dizendo:

- O quintal chega para nós. Olhe senhor Gouveia, em morrendo o “tio Zé Carlos”, não há ninguém quem cuide do quintal e do jardim.

 

- Dizes bem, Elvira, foi a melhor coisa que fiz. Trabalhei tanto para juntar alguns haveres e não

Tenho a quem os deixe, ou melhor, quem os mereça.

- Tem os seus sobrinhos, que não vão deixar de aceitar a herança…

Sim, logo aparecem para tratar do funeral e habilitarem-se como herdeiros… Eu sei. Mas olha, Elvira, a família não existe só para sucessão de bens, mas mormente também para apoio, arrimo solidário na doença e convívio fraterno etc. etc. Infelizmente nada disso acontece comigo; bem sabes.

- É verdade, senhor Gouveia. Mas é assim a vida moderna. Hoje nem os próprios filhos pensam em acompanhar devidamente os pais na sua velhice. Arrumam com eles para os Lares e que lá se amanhem…

Quando vou à vila gosto de visitar a minha prima Noémia que está no Lar e bem vejo a lamúria e tristeza de muitos, que é de fazer chorar as pedras!

Estas duas pessoas vivivam e estimavam-se como irmãos. Ele sempre a respeitou, até porque sabia que a Elvira era uma mulher honesta e crente. Viviam como Deus com os Anjos. Um amparo mútuo, Amigo e sério, de fazer inveja aos verdadeiros santos. Anos antes o senhor Gouveia ainda pensou em casar com ela, por causa das línguas do mundo e até para deixar parte da sua pensão de reforma. Só que ela logo lhe disse e de maneira muito expedita e desinteressada:

- Pense melhor, senhor Gouveia. Qualquer de nós já não está em idade de bodas… nem proclamas de banhos na Igreja. Distraia-se com os versos, que eu cuido da casa e deixe falar quem fala. A reforma também não é lá grande coisa… O mais importante é que cumpramos com os nossos deveres de Cristãos autênticos.

 

O leitor ainda não sabe, mas O Senhor Gouveia era poeta. Nunca quis manifestar bem a sua inclinação, mas é evidente que, desde novo, ocupou os seus tempos livres a fazer versos. Fez mesmo algumas letras para marchas e ranchos folclóricos da vila e tinha até um certo dedo para a música. Lia muita prosa, mas gostava mais de poesia. Sempre que ia á vila nunca se esquecia de trazer um bom livro clássico para ler, e a Elvira, com vontade de se ilustrar, lia também.

Tinha ele uma gaveta cheia de produções suas, algumas que havia dedicado à sua finada esposa e ao filho João, que Deus lá tinha.

Ainda hoje a poesia é o seu passatempo favorito, gostando de transmitir para o papel os estados sentimentais da sua alma. A Elvira sabe pouco de poesia, mas gosta de o ouvir declamar os poemas que ele faz com muito gosto e inspiração.

Há dias saiu-se a Elvira, com esta:

- Por que é que o senhor Gouveia não reúne todos os seus versos num livro? Tem poemas tão bonitos que as pessoas gostavam de ver. Aquele soneto. “O CANTAR DA ÀRVORE”, que escreveu há dias, ficou um espanto! Chamam-lhe, às vezes, “poeta popular” porque mal conhecem os seus escritos, apenas sabendo de alguns que faz de improviso. Não publica nada.

- Escuta, Elvira: Eu até gosto que me chamem “poeta popular”. Significa que canto para o povo e de maneira que o povo me entenda, percebes? Não vou importar-me com isso, até por que já vi rotular de “poetas populares” grandes e muitos distintos poetas portugueses, nomeadamente António Aleixo a quem alguns dos famosos não lhes chegam às barbas…

 

- Santa ignorância chama-se isso, porque “poetas populares”, ou lá o que é, atribuem-se às vezes, de forma humilhante e hostil àqueles que fazem uns versos poucos inspirados, sem métrica nem nada, o que não é o caso do senhor Gouveia, Bagagem de conhecimentos tem muita, mas falta-lhe nome, o que é, por vezes, bem difícil de conseguir, Mas repare, senhor Gouveia, há quem arranje um nome bem sonante, fazendo poesias que ninguém compreende. Por exemplo: eu não entendo aonde se encontra a arte e o interesse destes versos que, como diz o autor, estão fora do seu ritmo:

 

Há mais de meia hora

Que estou sentado à secretária

Com o único intuito

De olhar para ela.

(Estes versos estão fora do meu ritmo.

Eu também estou fora dó meu ritmo).

Tinteiro grande à frente.

Canetas com aparos novos à frente.

Mais para cá papel muito limpo.

Ao lado esquerdo um volume da “Enciclopédia Britânica”.

Ao lado direito –

Ah, ao lado direito!

A faca de papel com que ontem

Não tive paciência para abrir completamente

O livro que me interessava e não lerei.

 

Quem pudesse sintonizar isto!

 

- Não entendes, mas entende quem os escreveu, talvez só para si… Tens razão ninguém ousaria chamar “poeta popular” a Fernando Pessoa, autor do referido texto, que não tem nada de especial e nem de poético. Aqui, que ele não nos ouve, também não me agrada este género de poemas. Sim, mas ele tem coisas um bocadinho melhores. A “Mensagem” é uma obra muito conhecida e, até, há quem julgue Fernando Pessoa, o melhor poeta de todos os tempos.

- Talvez, senhor Gouveia, mas eu gosto mais dos seus poemas, que são transparentes como a +agua cristalina dos ribeiros. Lembram mesmo as poesias que dantes vinham nos livros de leitura, feitas por grandes mestres.

-, Grato, Elvira, pelo teu amável elogio, Daqui a pouco percebes mais do que eu. Estou admirado, já falas em métrica e tudo…

- Sim, já sei que as quadras populares têm de ter sete sílabas, senão ficam coxas e não soam bem ao ouvido.

 

A vida ia decorrendo calma, até que algum tempo depois, Deus chamou o senhor Gouveia à sua presença, comparecendo imediatamente na casa os três sobrinhos. Ao abrirem o cofre encontraram uma linda caixa prateada, que abriram logo, pensando talvez, tratar-se de alguma colecção de jóias. Mas não. Eram preciosamente versos que ele mais gostava e havia guardado ali, com muito carinho.

Um dos sobrinhos, decepcionado, quando viu do que se tratava, passou a caixa para a mão da Elvira, dizendo de modo aborrecido:

- São as cantilenas do meu tio. Atire com elas para o lixo…

A Elvira, em vez de jogar fora a caixinha, foi guardá-la na sua mala, como saudosa relíquia do seu amo e até chorou de comoção, por ver a falta de apreço que tinham por coisas que o tio estimava tanto.

Dias depois, e já com calma, a Elvira tornou a abrir a caixa dos versos e deu lá com um envelope lacrado, que4 continha no exterior o seu nome. Surpreendida, abri-o e logo encontrou duas folhas de papel escritas, sendo uma em verso e outra em prosa. Primeiramente leu a folha em prosa, que dizia:

 

 

Elvira

 

Fiz testamento Notarial em Abril. Cópia do documento fica no cofre. A casa e recheio são para ti enquanto viveres, e ainda algum dinheiro. Contemplei algumas Instituições Sociais. A Biblioteca fica para a Câmara Municipal, mas após a tua morte. Os meus sobrinhos herdarão um dia a casa quando a deixares, Isto como saudoso preito a minha irmã, de quem fui sempre muito amigo.

 

Grato por tudo

José Martins Gouveia

 

Seguidamente e comovidíssima a Elvira leu a folha em verso, reparando que era um soneto ao qual ele pôs o título:

 

ENLEVOS DE AMOR

 

Quando eu morrer, Elvira, o que escrevi

E guardei nesta caixa de segredos,

Versos arrumadinhos, por meus dedos,

Não tendo a quem os dar… São para ti.

 

São memórias dos anos que vivi,

Meus Enlevos de Amor, dos dias ledos,

Tantos que fiz à sombra de arvoredos.

Lembrando a esposa e filho que perdi.

 

Guarda-os, Elvira, bem no teu poder;

Não tenho mais a quem os oferecer,

Nem que deite, por eles, um olhar!...

 

Um dia seguirás este caminho.

Mas antes, minha “irmã”, põe de mansinho

Todos os meus poemas a voar!

 

Muito sensibilizada, a Elvira, com as lágrimas nos olhos, decidiu não revelar a ninguém o que a caixa continha de misterioso… Foi depois ao cofre, mas não encontrou a cópia do testamento. Deduziu que os sobrinhos a sacaram com o fim de se habilitarem como herdeiros universais… Sim, eles ainda pensaram nisso, mas de nada valeu, porque outra cópia autenticada estava nas mãos de um Advogado, que logo legitimou o assunto nos serviços Notariais e Finanças.

 

A Elvira, ao ler toda a poesia do seu amo, decidiu tornar público o importante espólio poético do senhor Gouveia. Em sua saudosa memória, mandou editar um livro de poemas, quase todos sonetos, ao qual pôs o título “ENLEVOS DE AMOR”, exactamente o nome que ele dera ao soneto que lhe dedicou.

O nome de JOSÉ MARTINS GOUVEIA iria ficar na História das Letras Portuguesas, graças à Elvira, que foi muito louvada por este honroso gesto. E o livro agradou de tal maneira ao público que a obra de mil exemplares, em três meses, se esgotou. Uma considerada Editora tratou depois de uma 2ª Edição.

 

Eis uma simples história, que poderá talvez, ter algo de realidade.

 

 

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