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À BEIRA DO RIO CEIRA

Blogue iniciado pela autora, Clarisse Barata Sanches, a exímia poetisa de Góis, falecida a 25 de dezembro de 2018. Que permaneça intacto em sua homenagem.

À BEIRA DO RIO CEIRA

Blogue iniciado pela autora, Clarisse Barata Sanches, a exímia poetisa de Góis, falecida a 25 de dezembro de 2018. Que permaneça intacto em sua homenagem.

PRECIOSA DA VÁRZEA

23.11.09, canticosdabeira

MURMÚRIOS DO CEIRA

III

PRECIOSA DA VÁRZEA

                                   As grandes dificuldades do passado, vividas com honradez, são exemplos para o futuro, C.B.S.

A Preciosa, por ficar sem pai aos treze anos de idade, vivia com a mãe e dois irmãos mais velhos, na Várzea de Góis. Nascera mesmo ali junto ao Adro da Igreja, decorado de arvoredos.

 

Por herança do chefe da casa, já desaparecido, possuía esta família uma Padaria; e eram os seus irmãos, auxiliados também pela mãe, que coziam o pão que a Preciosa, ainda nova, tinha de ir vender, manhã cedo, mais a sua amiga Zulmira, do Linteiro. De cabaz à cabeça, descalça e a pé, corriam todos os lugares de Serpins, Ponte do Sótão, Cazelhos, Portela, etc. a fim de o distribuírem pelas mais variadas lojas e tabernas. Nos dias de mercado, também as moças costumavam ir a Góis fazer a venda.

 

Quando vendiam o pão todo e regressavam cedo a casa com o dinheiro num saquito de pano, a Preciosa – dizia, muito satisfeita, a sua mãe:

 

- Vê, mãe, já cá estamos e vendemos todo o pão. Mas venho cansada e já me doem os pés.

 

- Tem paciência, filha, – volvia a mãe temos de lutar pela vida para não morrermos de fome. Mesmo assim, temos ainda de dividir a sardinha… Se o vosso pai fosse vivo, tudo seria diferente, mas assim, temos de trabalhar mais para vivermos sem vergonha do mundo. Não vês o Alfredo, do Correio que todos os dias tem de ir a pé levar as cartas a Góis, num saco? E pelo que sei, não ganha muito, coitado. Para a semana que vem, tens de tirar uns dias para o Sr. Carlos Cortez. Quer que vás ceifar a erva na Quinta dos Amiais. E o Snr. Artur precisa do milho da Costeira sachado.

 

E o diálogo prosseguia:

 

- Também me disse ontem a vizinha Prazeres que tenho de ir lavar-lhe a casa. (Esta senhora foi depois a minha madrinha e o seu filho - Dr. Francisco Cortez- o meu padrinho) Tudo farei, minha mãe, mas tem de me comprar uma saia de fazenda para estrear na festa da Senhora da Candosa. Estou a pensar em ir lá montar um botequim, mais a Zulmira. Poderá ser que a venda de refrescos dê para comprar a saia nova e um lenço bonito de cachené…

 

Uma vida cansativa! Mas, coitada da Preciosa, tinha também de acarretar o estrume em cestas à cabeça para a Samoura, onde cultivavam terras do seu avô, que ali vivia. Sabia-lhe lá muito bem uma merendinha que o avô mandava preparar à sua governanta, dizendo sempre:

 

 - Não quero que os meus netos passem aqui, sem comerem alguma coisa.

 

 - Este Manuel Barata, de longas barbas, e andou muitos anos no Brasil, era um santo e honrado Homem! Contava a minha prima Maria Teresa que este seu avô também, chegou a emprestar dinheiro ao célebre João Brandão, (tido como malfeitor e ladrão) e ele lho restituiu….

 

Naqueles trajectos da Várzea para a Samoura e da Samoura para a Várzea, muitas vezes acompanhada de sua prima Elvira, que trazia um irmão, em Coimbra, a estudar para Padre, o que não correu ela uma vez, para entregar cem escudos que vira caídos no chão e eram do Machucho, que os acabara de receber em Góis e os deixara cair na estrada nova. Nem meio tostão lhe deu de gratificação… mas ela sentiu prazer em cumprir com a sua obrigação. Seu pai e meu avô também havia sido um Homem honestíssimo, porque poderia ter-se ausentado do Brasil, mas só veio após ter pago uma dívida enorme de um seu irmão desaparecido, por quem ficara de fiador. Essa mágoa, de chegar à Várzea com poucos rendimentos, fê-lo morrer cedo.

 

Os seus irmãos é que estavam encarregados de tocar os sinos da Igreja, mas quando saíam, era sempre a Preciosa que tinha de puxar pelas cordas dos dois sinos ao mesmo tempo – e com toda a sua ligeireza, – a fim de fazê-los estrondear, ora de tristeza, ora de alegria pela Várzea inteira e casais à volta.

 

Quando completou dezoito anos, muitos dos rapazes da Várzea e arredores, ao vê-la tão desembaraçada e airosa, começaram a sorrir-lhe e a piscar-lhe o olho… Mas a Preciosa moça sossegada e de tino, não lhes dava confiança. Gostava de saudá-los com a sua alegre simpatia e certamente alguma estima. Só isso.

 

Num certo dia, em que ela tocava o sino da Igreja, viu ao longe um rapaz, de alcunha o “Tafona”, a serrar lenha numa eira com os olhos fixos na Torre. Tão distraído e enlevado estava a olhar para ela, que a “burra” virou-se e ele caiu ao chão, dando uma cambalhota… A Preciosa riu-se muito com esta peripécia engraçada, dizendo-lhe depois, quando o encontrou:

 

- Tanto olhaste, que até caíste da “burra”, meu parvo!...

 

Uma tia deste “Tafona”, insistindo muito para que ela casasse com o sobrinho, certa vez chamou-a a sua casa para lhe mostrar uma mala de enxoval, que tinha preparada para ele, e disse-lhe:

 

- Vê Preciosa o que tenho aqui guardado para o meu sobrinho. Só lençóis de linho, com bordados, são doze. Toalhas, também de linho com renda, são dez. Também já comprei duas panelas, um tacho e até uma peneira… Porque não aceitas o namoro?

 

- Ainda sou muito nova, senhora Maria. Também me falou o primo “Zé” do Cabeço que veio há pouco tempo do Brasil, todo aperaltado e vestido de branco… e eu não aceitei. Contudo, eu agradeço-lhe a sua atenção.

 

Como andavam muitos pretendentes a quererem entabular conversa com ela, a mãe vigiava-a muito, não autorizando que ela frequentasse bailes nem se demorasse na fonte. Muito austera, fechava-lhe à noite as janelas todas da casa, para que não espreitasse quando às vezes no Adro os rapazes lhe faziam serenatas à luz do luar. Era já uma rapariguinha feita, - a Preciosa – e ainda levava com uma chinela, cá fora na varanda… Então dizia – à sua mãe:

 

- Aqui não, minha mãe! Vamos ali para dentro, que tenho vergonha. Ao Luís Garcia, a quem chamavam o “Manquité”, ainda lhe ouvi dizer algumas vezes, caçoando com ela: “aqui não, minha mãe, vamos ali para dentro”…

 

Os seus irmãos eram ambos executantes da Banda Filarmónica, tocando trompa, um e cornetim o outro. O mais alegre e divertido era o Juvelino que cantava e encantava quem o ouvia. Este rapaz que morreu no Brasil em 1940 e lá teve descendência, deixou fama na Várzea pela sua jovialidade, sentido de humor e graça. Um seu neto de nome António Bressan, tem hoje no Brasil uma clínica de oftalmologia. Aqui deixo um abraço para o primo Tony e família.

 

Contava a minha mãe, que este seu irmão – Juvelino, algumas vezes foi para a beira do Rio com um guarda-chuva aberto e a fazer-se mais baixo… a fim de assustar os que andavam por lá à pesca sem licença que, pensando tratar-se do Senhor António, guarda-rios, fugiam a correr com o receio da multa.

 

Quando chegou aos vinte e dois anos, por consentimento de sua mãe, a Preciosa aceitou namoro com um seu parente de Góis. Um namoro sempre a três… até ao dia do casamento!...

 

Alguns jovens mais ousados chegaram a fazer zaragatas para conseguirem ser os escolhidos do seu coração. Esteve até combinado com o “Zé da Gaia”, que também a pretendia, mais outros, prepararem uma emboscada no Barroco do Nogueira, e darem uma “malha” no eleito, correndo com ele para Góis…

 

Nada conseguindo, os moços ficaram tristes. Entre eles havia um estudante de engenharia, que nem queria acreditar, apesar de ser ele a trazer as amostras do tecido, de Coimbra, para o vestido de noiva e ter-lhe ouvido algumas vezes dizer que não era sapato para o seu pé…

 

O dia vinte de Maio de risonha Primavera aproximava-se. Para o desiludir e já próxima a boda, a mãe disse, um dia à filha, na sua presença:

 

- Preciosa, vai dar as amêndoas, do teu casamento, ao Antoninho.

 

Será que alguém ainda se lembra do Antoninho da Várzea? Penso que sim, pois Vila Nova do Ceira, como se diz hoje, tem lá uma rua a recordar o saudoso Engenheiro António Barata Garcia.

 

O “Zé da Gaia, de seu nome próprio – José Olivença, também eu o conheci muito bem. Um homem alto e forte que muitas vezes me disse na loja de comércio: “Venho sempre a Góis no “carro” das minhas pernas…

(História verídica contada por minha mãe, na qual ela foi a protagonista) C.B.S.